Ninfisses (Conto)

Imagem: SeaArt (gerada por Allan F. F. Gouvea).

 

NINFISSES

Por Ellen Fernandes

 

       Encarando seu reflexo, Lolanthe pôs as lentes que ocultavam seus olhos, agora tingidos de castanho. Lolanthe havia nascido com uma cor rara; os tons de roxo eram notoriamente difíceis de se encontrar. Desde o nascimento, ela era conhecia como a “pequena flor violeta”, e este era o significado de seu nome.

       Misturou a base com um matiz violeta vibrante, o harmonizando com o tom remanescente de sua pele ainda colorida. Delicadamente pincelou sua permanência naquele lugar encantado, interrompida apenas pelos gritos que cortaram sua manhã, indicando mais uma vítima da “loucura” das ninfas – mais um exilado. Aquela mesma “loucura” que a acometia, aquela insanidade que concedia aos autodenominados corretos o poder de prender, mutilar e expulsar daquelas terras os que perdiam a cor.

 

Imagem: SeaArt (gerada por Allan F. F. Gouvea).

 

       Eles sempre diziam que era a doença da loucura, mas ela compreendia intimamente que não era simplesmente uma doença. Era uma mutação, talvez desencadeada pelo temor de adquirir aquela insanidade que lhe tirava tudo. Talvez fosse uma enfermidade da alma, que fazia perder as cores quem tinha perdido o gosto pela vida, pela rotina, pela garantia de dias sempre felizes e sempre iguais.

       Já se passaram dois longos anos escondendo o violeta que sumira de sua pele e olhos. Era um desespero atroz, um medo arrasado, no entanto, o maior temor era ser amordaçada e lançada rio abaixo para fora da fronteira.

       Como sobreviver sem suas delicadas asas arrancadas à força e a correnteza, estando ferida e amarrada? A verdadeira loucura residia nos ditos sãos, que cometiam atrocidades por causa de uma simples despigmentação, algo que deveria ter outra explicação além da insanidade.

       Lolanthe, era uma ninfa flora, aquela que fazia as cores da primavera a polinizar as flores destinadas a frutos um dia. Mas restavam tão poucas delas. A pequena vila esvaziada vivia imersa em um silêncio amedrontado, interrompido apenas pelos gritos de horror de mais um preso, condenado ao exílio. Lolanthe saiu a caminhar, não encontrando motivos bater suas asas por uma distância tão curta. Na assembleia, mais uma família chorava a perda de sua primogênita. Imploravam clemência que ela sabia que não chegaria.

       Olhou para aqueles velhos, que deveriam ser o pilar de sustentação da comunidade, destruindo-a por algo tão infundado. Respirou discretamente e seguiu todos em silêncio quando a conferência terminou.

       O trabalho era o mesmo desde que seu ofício fora revelado e ela o fazia com perfeição, mesmo agora havendo ali bem menos mãos que antes. Flutuou displicente de um lugar ao outro, recolhendo materiais, organizando sementes e fazendo o melhor que podia. Sua chefe, orgulhosa, comentava baixinho como Lolanthe era tão aquele lugar. E como devia ser usada como exemplo a ser seguido para evitar a grande loucura.

       E foi ali mesmo que Lolanthe se odiou, foi ali que desejou morrer e deixar desvanecer toda a cor. Aquela vida regrada e patética não deveria ser o sonho de ninguém. Ela desejava poder gritar aos ventos que era completamente louca. Louca pela necessidade de algo além daquilo que vivia, afinal, tinha asas.

       Por que permanecia no chão se possuía asas?

       O primeiro pensamento foi montar um grupo rebelde, mas ela não tinha coragem. O segundo foi: “e se eu mesma descer o rio com as asas que eu possuo e procurar para mim um lugar seguro?”

       E uma pequena Lolanthe juntou suas coisas, para pôr seus planos em prática e salvar os pobres prisioneiros, atirados todos ao primeiro dia de cada mês em algum lugar esquecido. Aquela seria sua maior alegria em tantos anos de vida, ela tinha certeza.

       Então, quando a noite se fez silenciosa, Lolanthe se atirou em direção à planície depois da grande montanha da cachoeira. O lugar era bonito, aparentemente intocado pela humanidade. Voou noite adentro até alcançar uma distância considerável da sua prisão dourada.

 

Imagem: SeaArt (gerada por Allan F. F. Gouvea).

 

       Buscou por árvores, as mais altas delas, as copas das outras menores ocultando os grandes galhos frondosos. Naquele lugar, ela poderia viver e, quem sabe, erguer uma cidade. Uma cidadezinha dos pequenos exilados.

       Usou seus dons, buscou pelo espírito daquela antiga árvore que a respondeu em regozijo. Fez crescer ali galhos médios e imperfeitos. A magia costumava ser perfeita, e talvez um dia fossem procurar saber se algum dos exilados tinha sobrevivido. Ela precisava pensar em tudo, porém, passava rápido, e ela voltou para casa.

       Os dias seguiram assim, nessa nova loucura, nessa vontade crescente. E um belo dia, quando acordou, o violeta de seus olhos havia voltado. Aquele violeta brilhante, aquela cor bonita e radiante que havia testemunhado se esvair.

 

Imagem: SeaArt (gerada por Allan F. F. Gouvea).

 

       Agora, o violeta em seus olhos parecia ainda mais vivo, irradiando como raios ardentes. Ela podia ver, enquanto se enchia de coragem, a cor cobrindo novamente sua pele, até mais uma vez se tornar uma flor violeta – era finalmente a ninfa Lolanthe, aquela menina que fazia a relva crescer quando seus pés tocavam desnudos no chão.

 

Imagem: SeaArt (gerada por Allan F. F. Gouvea).

 

       Era isso o que a vila Ninféia tinha perdido: a capacidade das pequenas ninfisses, das pequenas loucuras que pessoas coloridas com asas deviam vivenciar. Afinal, do que adiantava ter asas se você não pudesse usá-las? Do que adiantava ter orelhas pontudas e pele violeta vibrante se não se pudesse pintar as flores com bolinhas e a grama de azul? E por que eles não moravam lá no alto, seguro nas copas, em vez de viverem no chão?

       Ela estava tomada pela loucura boa das perguntas. Lolanthe estava louca por viver do melhor modo possível uma vida que não havia solicitado.

 

Autora: Ellen Fernandes

Instagram da autora: ellennfer8

Revisão: Allan F. F. Gouvea

 

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